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Balada da Prostituta Morta.






Sempre à hora


da Ave-Maria 


e sempre só 


e todo dia


vinha ofertante 


a mercadora que


era, em si mesma 


mercadoria.



Teria, decerto,


um nome distinto:


Se era Marta


se era Joana


se era Maria,


quem saberia?


(Talvez Maria,


a Madalena, 



fosse o melhor 


que lhe caberia).


Mas quem merecia


sabê-lo, chamá-lo,


se um nome trazia


de boa vontade


a lótus ardente


e a sutil castidade


de grata amizade


que muito almejava


mas que não se daria?


Além deste nome



tão resguardado,


o que mais haveria


por traz de sua pele


tépida e tensa 


no mínimo traje 


que a revelava 


e que a escondia?


(É que pouco se via



além do contorno


sensual das pernas


ou da geometria


de seus quadris;


da algidez dos seios


ou do azul contido


em sua íris.) Pois 


quem saberia



se tinha um abrigo


quando chovia


se a mesa era farta


ou sempre vazia?


Se tinha alguém


que a embalasse


numa canção


quando dragões



ferissem seu peito


de afagia? Que luz,


que voz de canção


que rosa em botão


brotava do chão


de sua incerteza?


Quem saberia?


Talvez guardasse



oculta pureza:


(ágatas de sonho


de rara e beleza).


Talvez almejasse


voltar à esquina


de sua memória


rever sua história


de quando menina.



Talvez sonhasse


ser bailarina


bem pequenina


de meias boninas.


Pagou-se o preço 


para a viagem 


rumo aos mistérios


de seus espaços



de seus espantos


de seus segredos


guardados no íntimo 


de sua mais doce


geografia? As


mãos ávidas 


sobre seu corpo


galgaram as ameias



do seu coração?


As íris ardentes


que a devassaram


viram as paisagens


guardadas na sombra


da solidão? Seus


olhos de gueixa


no azul profundo



às vezes se erguia


além da euforia


das vozes diversas


dispersas no mundo.


E às vezes se via


Aeronave vaga


em sidéreas alturas 


além de Antares



rumo aos lugares 


que não poderia:


Se via a sonhar


com Chans Elysee


com montes andinos


e Veneza ao luar.


Adejava por ilhas


beijadas por ventos



repletas de acácias


e sargaços aos sons


de vagas do mar.


Mas o que haveria


senão as paisagens


que sempre trazia


gravadas no olhar?


Que mais haveria




senão vultos tíbios,


senão cores sujas 


de olhos vorazes


que a devoravam


na alcova fria?


(A coreografia


que só findava


quando se ouvia



o clarim dos pardais


e o ronco dos carros


chamando a manhã.


À hora tardia


de alma ferida


o corpo sem prumo


sem norte ou divã


seguia sem rumo



Pra onde? 


Pra fúria do mar? 


Pro fundo do abismo?


Pro sétimo andar?


Quem saberia? 


Quem poderia 


da dor que trazia


de fato contar?



De súbito, o atrito,


do impacto 


e o grito


solto no ar.


Seu corpo de ave


de flor ou de onda


quebrou-se num mar


de treva e de sangue



(visco de mangue)


como a banhar


as cores da aurora


e a derramar


toda a agonia


nascendo do dia


quase a raiar.



Na mesma rua


que se vendia


vazia de amor


agora partia.


Pobre e vazia


de ouro, de bens,


e da vida que tinha,


restou a apatia


do parco retrato



exposto na fria


manchete do dia.


Na árida esquina


sob a manhã


talvez umas marcas


gravadas no chão.


Alguns contarão


casos e lendas



alguns a incluirão


em estatística,


em número de lista.


Citada em entrevista,


Nêmesis sem posto,


hierodula sem rosto,


e depois, o que fica?


Talvez nunca tenha



no último postigo


alguma coroa


de flor, ou, consigo,


um anjo de mármore


(guardião de jazigo).


Mas quem percebeu


a ovelha errante


balindo na noite



tão longe dos seus,


talvez considere


no íntimo seu


que pouco se dera


àquela que em vida


à morte se deu.


Se há tantos cordeiros


pascendo seguros



pastores aos tantos


nos paços de El-Rey


quem se ocupara


em ir pelos montes


e a vagar pela noite


em busca da ovelha


que se perdeu? E se


tentasse algum dia 



contar sua história,


compor um poema


em sua memória,


uma ária, um salmo,


ou um canto de irmão,


talvez este bardo


se veja, de chofre,


sem voz e canção.



Pois como traria


ofertado nas mãos,


um verso que diga


do fato e da dor


do riso e calor


do sol que esplendia


na alva que ardia


em seu coração?



Se apenas a foto


exposta em jornal


proveu este encontro


tão casual? Se


nem mesmo o nome


(tesouro tão seu)


jamais descobriu

sequer conheceu?




- (C. S. Sampaio, 2013)

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